❌ O direito ao erro ❌
E o dever da correção. Não existe "erro do bem", mesmo contra Bolsonaro.
Na sexta-feira acordei às 5 horas da manhã e comecei a preparar meu programa, o Desperta ICL (perdeu? clica no link aí). Costumo fazer uma ronda nos meios de comunicação do Brasil e do mundo e me deparei com uma manchete impactante do site G1, das Organizações Globo:
Pautei a notícia no programa e dei repercussão a ela. Acontece que ela era falsa.
Há, claro, muitos modos de se publicar uma notícia falsa. O G1, assim como toda a Globo, tem viés, mas é uma fonte em geral confiável se você souber ler as entrelinhas. Os jornalistas do site não publicam conscientemente coisas fantasiosas ou inventadas. Neste caso, a notícia se torna falsa por um erro crucial de INFORMAÇÃO e por outro de INTERPRETAÇÃO.
🔪 Por partes
Jóias na reunião? Não.
O que a manchete do G1 nos informa? Que as jóias dadas de “presente” a Bolsonaro na Arábia Saudita foram entregues durante reunião. Isso não é verdadeiro. Essa informação não está na ata da reunião (a qual tive acesso, ela tem quatro páginas e não menciona em nenhuma linha uma troca de presentes). Mais: tanto o ex-ministro almirante Bento Albuquerque quanto seu subordinado, o também militar da Marinha Marcos Soeiro, declararam à Polícia Federal que as jóias foram entregues a eles diretamente em seus quartos de hotel, tarde da noite, naquela mesma viagem. Havia muita gente na reunião. Todas garantem que não houve troca de presentes no encontro – e não, elas não são bolsonaristas, havia gente do corpo técnico do Itamaraty, pessoas com carreira para antes e depois de Jair Bolsonaro.
“Abordou” ativos? Não é bem assim…
De fato, na reunião se “abordou ativos”. Mas um comunicador é responsável pelo modo como sua mensagem chega às pessoas. Qual foi a reação imediata do público – e a minha também – ao ler essa parte? De que o Brasil foi lá “vender” nossas refinarias (ativos) ao árabes, e que isso explicariam as jóias (propina?) ao Bolsonaro. Essa interpretação se espalhou como rastilho de pólvora pela Internet, sendo replicada na Globo News, em diversos sites de notícias e por muitos influenciadores e parlamentares.
A “prova” de que houve “tratativas sobre ativos” na reunião foi publicada pelo G1, um trecho da ata da reunião.
Ao ler a ata na íntegra, como eu li, fica evidente que a fala do diplomata nada tem a ver com algum tipo de oferta de ativos (“em troca das jóias”, é assim que nosso cérebro processa). Christian Vargas está explicando ao árabes que, por decisão do governo brasileiro (vender ativos), o Brasil terá AINDA MENOS controle sobre seu mercado de petróleo, e que, por isso, não faria sentido que entrássemos na OPEP.
Brasil na OPEP?
A proposta de entrada do Brasil na OPEP foi feita pela Arábia Saudita em reunião direta com Jair Bolsonaro em outubro de 2019. O Brasil criou um grupo de trabalho para analisar a questão e respondeu negativamente. A ata da reunião do príncipe saudita com Bolsonaro é secreta, assim como a comunicação do governo brasileiro agradecendo – mas negando – o convite para entrar na OPEP. Eu tive acesso a ambas, não posso publicá-las por que documentos diplomáticos são assinados e têm várias marcações que podem ser rastreadas. Isso comprometeria minhas fontes.
Portanto, na reunião em que “se discute ativos”, como noticiou o G1, acontecida depois dessa investida dos árabes para assediar o Brasil e a se juntar a seu cartel de petroleiros, o diplomata Vargas está, novamente, explicando o contexto do mercado de petróleo do Brasil. Em bom português: ele está dizendo que, ao contrário dos príncipes árabes, nosso governo não tem poder de fechar torneiras e forçar o preço do petróleo para cima. Não há debate sobre venda de ativos, e isso em nada se liga com o escândalo das jóias (NESSA REUNIÃO).
O jornalismo tem direito de errar, e erra, mas precisa se corrigir. Não existe “fake news do bem”.
Correção parcial
Eu entrei ao vivo ontem no ICL e expliquei por que a notícia estava errada.
Hoje pela manhã, o G1 mudou a manchete e fez uma correção. As jóias saíram da “Reunião” e foram para a “Viagem”.
No entanto, a correção é insuficiente. Ela segue fazendo inferência a uma conclusão – é isso que ela faz o leitor pensar – que “abordar ativos” teria relação com o (suborno?) das jóias. Essa notícia deveria ser reescrita. Não há salvação para essa chave de leitura.
Bolsonaro cometeu muitos crimes e farei de tudo para que ele pague por cada um deles. As jóias, claro, tem cara e cheiro de propina. Cabe investigação. É preciso ter cuidado, no entanto, pra não avançar o sinal nas acusações sem provas. Até porque, as provas existem – e elas virão à tona.