Nossa melhor chance é que seja tudo apenas uma espetáculo macabro
Os 14 mortos em São Paulo e a sombra do PCC
Já são 14 os mortos pela polícia em São Paulo desde que um bandido assassinou o policial militar Patrick Bastos Reis, da Rota.
Ontem, sem nenhuma investigação e longe de termos sequer perícia nos corpos, o governador de São Paulo disse categoricamente que “não houve excessos” por parte da PM, que a operação foi "profissional" eu que ele, Tarcísio de Freitas, estava "extremamente satisfeito" com tudo. Já havia oito mortos pelas ruas.
Noto o uso das palavras.
“Profissional”; “sem excessos”; “extremamente satisfeito”.
As pessoas que eu conheço ficam “extremamente satisfeitas“ com um sorvete, ou quando conseguem dar alguma experiência bonita para os filhos; quando se deparam com a beleza da natureza ou da arte; quando vêem uma baleia saltar no mar. Coisas assim. O governador de São Paulo é diferente. Ele fica “extremamente satisfeito” quando a polícia deixa um rastro de mortos pela cidade.
Hoje, a tragédia aumentou. Diante dos 14 os mortos na ação “profissional” da PM, Tarcísio precisou corrigir um pouco a rota: deu outra coletiva de imprensa dizendo que "se houver excessos, nós iremos investigar". Não perdeu a pose, mas talvez o cheiro dos cadáveres esteja chegando perto demais do Palácio dos Bandeirantes.
De quantos mortos Tarcísio precisa até que admita que não há mistério nenhum nessa operação? Que não há profissionalismo e nem satisfação? Que ela é apenas mais do mesmo do que vimos como cidadãos desde a fundação das polícias: soldados cometendo massacres contra miseráveis e agindo como se fossem o Escritório do Crime que matou Marielle Franco? (Escritório do Crime, aliás, formado por policiais).
Para além do escárnio dessa declaração – que nos lembra o pior de Bolsonaro, de quem Tarcísio tenta roubar votos, aliás – temos ainda o óbvio: chacinas NUNCA FUNCIONARAM PRA COMBATER CRIME NENHUM. Elas são capazes apenas de matar as sedes de sangue de certos projetos políticos e de certa parte da população que, por medo, ignorância ou sadismo, aplaude e vota.
Efeito colateral
Na entrevista de hoje, o governador de São Paulo faz ainda uma retórica vazia e mentirosa, de que essa operação está asfixiando o tráfico. Não está, e não irá. E ainda deu a senha: “não existe combate ao crime sem efeito colateral”. Para policial matador, muito mais do que meia palavra.
"Vamos entender que o tráfico é um business", disse Tarcísio. Sério, governador? Que conclusão brilhante. Estou aplaudindo o senhor, sozinho na minha sala.
Vamos colocar a bola no chão aqui: a verdade é que o PCC está pouco se lixando para tudo isso – em termos de 'business', pra ficar na palavra gourmetizada; em uma semana, a parte ínfima do esquema que foi afetada (se foi) por essas operações irá se recompor. O PCC é uma empresa global do tráfico, o maior intermediador da cocaína da América do Sul, abastecendo as mais importantes máfias globais. Um ‘business’ que esse papinho de Tarcísio – um papo pra otario, convenhamos – só pode causar risos nos poderosos chefões.
Para lembrar de 2006
O que mantém São Paulo segura há quase 20 anos é um pacto não-escrito de não-agressão entre o poder público e a criminalidade. O PCC pacificou São Paulo, organizou vastas áreas da cidade e também os presídios. Até as pedras sabem disso.
Não é preciso gostar dos fatos para entendê-los. As forças policiais JAMAIS irão acabar (nem perto de arranhar) com o poder do PCC, como não acabaram com a Cosa Nostra ou com qualquer outra máfia no mundo. Na Itália, uma guerra entre a máfia e o estado causou mais de duas mil mortes nos anos 1980. Os jornais noticiavam que Palermo, na Sicília, parecia Beirute em guerra.
A Cosa Nostra recuou, se reorganizou e resistiu. Em seu vácuo, outras máfias saíram fortalecidas. A guerra do estado beneficiou Camorra, ´Ndrangheta, Sacra Corona Unita. No fim das contas, a população civil sofreu, juízes, procuradores e policiais foram assassinados, e o crime seguiu seu curso. Basta saber a história.
Guerra contra máfias é conversa mole de quem lucra politicamente com a barbárie. O tráfico surge da proibição e nunca, em lugar nenhum do mundo, foi vencido pela polícia. Aliás, a polícia muitas vezes se alia aos bandidos.
Se a PM comandada por Tarcísio insistir na estratégia do confronto, logo a facção poderá reagir como fez em maio de 2006 – foram 564 mortes em dias de terror. Devemos torcer para que tudo isso seja apenas uma encenação macabra na qual o governador de São Paulo dança em cima de alguns caixões para garantir os latidos dos eleitores de Bolsonaro, dos quais depende.
Há uma disputa por esses eleitores com a inelegibilidade de Bolsonaro. Um atalho para conquistá-los é empilhar alguns corpos pela cidade, “mirar na cabecinha”. A história, mais uma vez, está aí para provar.
Tarcísio não tem a menor ideia do que está fazendo e de contra quem está lidando.
Ou é o contrário disso, se é que vocês me entendem.