Foi no meio da pandemia que descobrimos que meu pai estava doente. Fazia tempo que não nos víamos por causa das restrições dos voos durante a covid e eu fiquei muito preocupado quando vi o nome de minha mãe piscar na tela do telefone no meio de uma tarde qualquer de março de 2021. Eu estava no trabalho.
Era um horário incomum para nossas conversas. Às voltas com os dados sobre os números de mortos da covid – que naquele mês subiam de modo assustador –, larguei tudo e atendi. Em meio ao prenúncio da tão temida segunda onda do vírus, minha mãe chorando me dizia que meu pai, seu marido da vida toda, estava muito doente.
Não sabíamos exatamente o que ele tinha. Um desmaio e uma série de episódios assustadores levaram o pai ao médico até que finalmente, em 22 de março às 16:05, minha mãe me mandou uma mensagem: “tivemos o resultado hoje, não é coisa boa”.
“Me diz quando estiver sozinha pra eu te ligar?”, respondi três minutos depois.
“Tô sozinha”.
Liguei e choramos juntos diante da incerteza dos dias que estavam por vir.
Acordei com a cabeça pesada na manhã seguinte, quando mais de três mil brasileiros perderiam a vida para a covid. Peguei meu celular e mandei esse áudio para minha mãe.
Aquilo não saía da minha cabeça. Doente e tendo que frequentar hospitais a todo momento, meu pai era um alvo fácil para o vírus. Seu tratamento – depois descobriríamos que ele tinha um câncer “igual o do Gianechini e o da Dilma”, diria minha mãe – jogava suas defesas no chão. Uma porta escancarada para a covid.
Ao longo de muitas semanas fomos conversando por telefone e mensagens. Uma espera longa enquanto a imunização não vinha. Assim como poderia encontrar a cura, meu pai também poderia morrer em meses, justamente aqueles meses que estavam passando sem que pudéssemos nos abraçar e nos beijar, sem que eu pudesse dar um sacode nele e dizer que tudo ficaria bem.
O velho nunca foi um cara de muitas palavras. Eu perguntava como ele estava: me respondia “bem”. Eu insistia um pouco mais, ele mudava de assunto. Em paralelo, minha mãe pedia para que ligássemos pra ele. “Liguem pra dar força, ele parece muito abatido”. Era o valentão de sempre, o ex-boxeador amador que sempre ficava em posição de guarda quando nos cruzávamos em alguma parte da casa. A cena clássica – juntos com alguns pares de luvas de competição espalhadas pela casa – virou uma piada na família desde a nossa adolescência.
Só tive coragem de encontrar meus pais no fim de maio. Comentei com minha mãe que eu ainda não tinha me vacinado e cogitei esperar até que as doses chegassem para a minha idade. “Você que sabe”, ela me respondeu. “Mas se você tem saudades…”. Eu tinha, então eu comprei uma passagem aérea só de ida e fui.
Levei meu pai para a segunda quimioterapia de uma série que ele teria que fazer. Enfiei ele num carro e dirigimos por mais de 100 quilômetros até o hospital.
As idas ao hospital me deixavam muito tenso. Assim como eu, muita gente ali não tinha se vacinado. Vivendo em uma das regiões mais bolsonarizadas do país, meus pais estavam em meio ao risco de pessoas que não usavam máscara, que não se preocupavam com a higiene das mãos e que, no limite, jamais tomariam a vacina. Eu me sentia caminhando em um campo minado e tendo que carregar meu pai no colo.
Um dia fiquei observando o velho sentado na cama do hospital, as pernas já muito magras balançando no ar, a curvatura de um homem que um dia fora muito corpulento e que estava perdendo músculos para uma doença maldita. Se ele pegasse o vírus da covid ali, naquele momento, eu pensava, tudo iria por água abaixo. Tentei ser forte e nunca demonstrar isso. Jamais toquei no assunto. Naquele momento eu só queria ser um apoio e dar amor ao meu pai. Dei e tive de volta, cuidei dele e por isso sou muito grato.
Nas horas em que eu estava sozinho, porém, não conseguia parar de pensar que havia uma chance real de meu pai morrer bem ali se pegasse covid. Enquanto nossa família se unia em torno dele e de seu tratamento, com fé e esperança na cura, eu sentia ódio em saber que poderia perdê-lo por causa das loucuras de um homem chamado Jair Bolsonaro, que havia feito de tudo para retardar a chegada dos imunizantes. Um presidente da República que entupia a cabeça vazia das pessoas com a ideia de que a vacina não servia pra nada, que bom mesmo era esperar todo mundo pegar, aguardar a “imunização de rebanho”, que os velhos iriam morrer de qualquer jeito, que todos iríamos um dia morrer e dane-se. O que eu sentia no fundo era ódio.
Eu comemoro a inelegibilidade de Jair Bolsonaro e espero a sua prisão. Precisamos manter afastado da vida pública e social um ser abjeto que tanto mal causou a milhões de pessoas. Ninguém destinado a espalhar sofrimento pode ser líder de um povo. Que fique longe das eleições e apodreça em uma cela imunda. Não sinto vergonha por pensar assim, sinto alívio.
Meu pai não resistiu e faleceu em maio de 2022. Naquele ano de esperança em que acreditávamos que ele seria curado, ele deixou para trás uma pescaria prometida a mim e que nunca veio e uma mensagem de feliz aniversário em áudio imortalizada no WhatsApp. Este ano, em janeiro, quando fiz 42 anos, eu a escutei de novo como se fosse a primeira vez. Fico feliz por ter tido a chance de cuidar do meu pai até o final, acreditando sempre em dias melhores. Porque é assim que deve ser.
Beijo, pai.
Amigo que texto lindo, um abraço bem forte. De longe sempre te acompanhando e agora assinante! Um beijo!
Sentindo o amor que emana dessa historia vivida com seu pai e familiares.
Desejando aqui que o otário seja julgado e preso, bem juntinho dos bandidos bons. Quem sabe ele muda o discurso: "bandido bom é bandido morto".