Fabiane cortou os cabelos e os tingiu de ruivo.
NĂŁo poderia imaginar que aquilo decidiria seu destino. Saiu de casa e comprou bananas no mercado onde trabalhava sua irmĂŁ. Carregava uma BĂblia enquanto ia de bicicleta atĂ© o trampo do marido. Os dois se desencontraram.
Na volta para casa, Fabiane foi confundida na rua com uma mulher que estaria raptando crianças para a prĂĄtica de rituais de bruxaria no GuarujĂĄ, em SĂŁo Paulo. Fabiane, com seus cabelos cortados e tingidos, parecia vagamente com o retrato falado divulgado por uma pĂĄgina no Facebook com milhares de curtidas e comentĂĄrios. A notĂcia, no entanto, era falsa.
A morte de Fabiane foi real: ela foi linchada, agredida por dezenas de pessoas, teve as mãos amarradas, foi arrastada na rua por quase duas horas até ser assassinada enquanto tentava dizer que não era a pessoa da imagem da internet.
HistĂłrias como essa se repetem no mundo todo.
O caso de Fabiane Maria de Jesus, entĂŁo com 33 anos (como Jesus crucificado) aconteceu em 2014. O Facebook nĂŁo foi responsabilizado.
Recentemente, na Ăndia, um homem de 26 anos foi confundido com um suposto sequestrador de crianças exibido em um vĂdeo que tambĂ©m viralizou nas redes sociais. Foi espancado e morto. O vĂdeo era uma campanha institucional do PaquistĂŁo, uma propaganda de TV sobre menores abandonados nas ruas, mas rodou pelo Facebook como se a encenação fosse verdade, e como se o agressor fosse o jovem que acabaria sendo assassinado. Ele morreu por se parecer com o ator.
No MĂ©xico, outro falso caso de violĂȘncia com crianças levou dois homens Ă morte. Eles foram queimados, tambĂ©m vĂtimas de notĂcias falsas viralizadas no Facebook e no WhatsApp â ambos aplicativos da empresa Meta, sediada nos Estados Unidos.
A mulher da internet
Cinco pessoas foram presas e condenadas no caso de Fabiane Maria de Jesus. O testemunho de trĂȘs delas no dia do julgamento nĂŁo deixa dĂșvidas sobre a motivação assassina dos posts no Facebook.
âO povo comentou que era a mulher da internet, que era da pĂĄgina GuarujĂĄ Alertaâ; âDisseram que a mulher era a que tinha saĂdo no Facebook, relacionada com magia negraâ; âO povo dizia que a histĂłria da moça ser seqĂŒestradora estava na internetâ.
Os debates sobre a regulamentação das plataformas como Facebook, Google, Tik Tok e Twitter nĂŁo se restringem, como podemos ver, Ă facilitação fraudulenta da eleição de Jair Bolsonaro no Brasil â bombada por notĂcias falsas desde a campanha de 2018.
Essas plataformas se viram livres por mais de uma dĂ©cada de terem que responder Ă altura por mudanças de regime no mundo todo, mentiras sobre fraudes eleitorais que levaram Ă violĂȘncias, golpes dos mais diversos e â como vimos â atĂ© assassinatos de inocentes perpetuados pela gasolina ateada sobre o fogo que seu modelo de negĂłcios atira em nossas vidas cotidianas.
E agora?
A discussĂŁo vem se tornando mais popular no Brasil com a eleição de Lula. Se a Bolsonaro e Ă extrema direita global interessa o tudo pode disfarçado de liberdade de expressĂŁo, ao governo petista podemos reputar a primeira tentativa sĂ©ria de legislar sobre o mais poderoso lobby do mundo. Assim como vocĂȘ nĂŁo pode perfurar um poço em busca de petrĂłleo no jardim de sua casa, ou dirigir um carro estando embriagado, os negĂłcios das conhecidas big techs precisa ser urgentemente regulamentado como qualquer setor da economia.
Pensem: elas sequer sĂŁo obrigadas a dizer quantos usuĂĄrios tĂȘm no Brasil
Na Europa, essa obrigação começou a valer somente este mĂȘs, graças a uma nova legislação. Se nĂŁo hĂĄ transparĂȘncia mĂnima, imagine se poderemos pensar, um dia, em responsabilizar as plataformas pelo conteĂșdo criminoso que circula nelas, e com o qual â e isso Ă© de EXTREMA IMPORTĂNCIA â elas fazem DINHEIRO. A audiĂȘncia dos posts falsos que levaram ao assassinato de Fabiane ajudou o Facebook a vender publicidade. Essa Ă© a conta macabra que temos que fazer. NĂŁo se trata de punir a qualquer custo, mas de saber quando e como punir.
Nos EUA, a Suprema Corte começou a debater essa responsabilidade
Os juĂzes decidirĂŁo se as plataformas ainda podem se apoiar em uma lei de 1996 â quando mal existia a Internet, muito menos as prĂłprias redes sociais â para se proteger sobre o teor dos conteĂșdos postados diariamente em seus sites. Hoje, elas nĂŁo podem ser tratadas como porta-vozes do que Ă© publicado por terceiros. Pense: a mesma norma blindava as redes sociais inclusive de serem responsabilizadas pela circulação de pedofilia, o que sĂł foi alterado em uma emenda de 2018.
O debate no Brasil estå atrasado graças ao governo Bolsonaro, que freou as discussÔes por interesse próprio em alimentar seus trolls.
Mas de novo: e agora?
Qual Ă© o projeto do governo Lula para a regulamentação das redes sociais? Qual a visĂŁo sobre o que Ă© a regulação em si e como fazer na prĂĄtica? Quais as definiçÔes dos conceitos mĂnimos (por exemplo, como se define âdiscurso de Ăłdioâ)? NĂŁo temos quase nenhuma informação pĂșblica sobre isso atĂ© agora. Preocupante, muito preocupante.
Nem mesmo a agenda de reuniÔes é transparente.
O que temos é um Projeto de Lei do Orlando Silva (PL 2630). Um bom projeto, o melhor documento que o Brasil jå produziu, mas também ele com problemas. O Orlando vem enfrentando o maior lobby do mundo, e eu não espero que ele vença todas.
Um dos problemas, como bem apontou a Renata Mielli aqui (pĂĄgina 27) e que hoje a NatĂĄlia Viana traz novamente Ă luz lĂĄ na newsletter da AgĂȘncia PĂșblica (assine): o projeto prevĂȘ que a remuneração ao conteĂșdo jornalĂstico feito pelas plataformas possa ser decidido em reuniĂ”es a portas fechadas. Adivinhem quem (a grande imprensa) vai ganhar com isso, e quem (os pequenos independentes) vai perder.
O governo precisa interferir nisso com urgĂȘncia e criar algo parecido com o Fundo Setorial do Audiovisual, uma das experiĂȘncias mais bem-sucedidas que temos no Brasil.
Em resumo: em vez do Facebook e do Google decidirem quanto pagar para cada veĂculo jornalĂstico (em jantares com os executivos das grandes empresas de jornalismo đ), o dinheiro que as plataformas fazem com o jornalismo produzido no Brasil deveria ir para um fundo e, dali, partir para o incentivo atravĂ©s de projetos submetidos e avaliados por uma comissĂŁo que envolva a sociedade civil. Estamos falando dos interesses do paĂs X os interesses das mesmas famĂlias de sempre (Marinho, Frias, Saad etc). E eles estĂŁo quase vencendo, de novo.
A bancada do like quer passar a boiada
Enquanto quase nada sabemos sobre os caminhos que o governo pretende tomar, o MBL Kim Kataguiri jĂĄ se adiantou e apresentou um projeto, que obviamente Ă© um lixo. Mas apresentou, e vai contar com o lobby das empresas de tecnologia pra isso.
HĂĄ vĂĄrios grupos de debate rolando desde o começo do governo, mas nĂŁo sabemos QUAL terĂĄ a visĂŁo da legislação futura, e nem ideia de que visĂŁo Ă© essa. Isso Ă© de EXTREMA IMPORTĂNCIA e nĂŁo pode ser feito de qualquer jeito por causa da comoção do 8 de janeiro.
Não se trata de QUANDO iremos regulamentar as plataformas, mas COMO. Tem grupo de trabalho na AGU, no MJ, no MDH, a Secom estå debatendo isso, o STF também.
Quem tem a visĂŁo da coisa?
Esses grupos se conversam?
Quem centraliza os debates e as propostas?
Qual o prazo pra termos um projeto sĂłlido?
Quem vai apresentar?
O Governo vai encarar a disputa com Lira e o lobby do like na CĂąmara ou vai decidir por Medida ProvisĂłria?
Quem serĂĄ ouvido nos dois casos?
O caso de Kim Kataguiri Ă© exemplar
A quem ele serve quando se antecipa às discussÔes e joga na mesa um PL pra blindar as plataformas de todas as responsabilidades? Quem paga a conta do jantar do deputado?
A Bancada do Like jĂĄ estĂĄ anos-luz Ă frente nesse jogo (leia isso).
O âdiĂĄlogoâ com a indĂșstria, porĂ©m, Ă© mais profundo do que Canziani faz parecer â e nĂŁo envolve apenas um interesse genuĂno por diĂĄlogo, mas tambĂ©m o financiamento da bancada. Por trĂĄs da frente, estĂĄ o Instituto Cidadania Digital, associação criada em novembro de 2019 para realizar âa interlocução entre o ecossistema digital e o Congresso atravĂ©s do assessoramento Ă Frente Parlamentar da Economia & Cidadania Digitalâ.
Ă exatamente o mesmo funcionamento da Frente Parlamentar de Agricultura, a influente bancada ruralista. Ela Ă© assessorada por um instituto financiado por grandes empresas do agronegĂłcio, o Instituto Pensar Agro, conhecido como IPA. NĂŁo apenas assessorada â mas tambĂ©m custeada. O instituto Ă© o braço institucional do lobby: produz desde estudos prĂł-agrotĂłxicos a propagandas disfarçadas de reportagens em grandes jornais, como aquelas favorĂĄveis ao Marco Temporal, que poderia acabar com a demarcação de terras indĂgenas no paĂs.
ZzzâŠ
A esquerda não estå se engajando nessa cobrança por medo de pressionar o governo do PT. Sendo franco: isso estå completamente errado e pode ter um preço alto.
Comentei sobre os problemas em vĂdeo: